domingo, janeiro 31, 2010




quinta-feira, janeiro 28, 2010

Requiem carioca


meu avô que não conheci
perdeu-se nestas ruas abrasadas
não há retratos dele
nem rastros vivos
nem restos de cinza
apenas a memória dorida
e silente de minha avó partida
rebelde e sem pranto
nunca me falou dele
seu único amor cruel
de certo amedrontado
dividido entre copacabana
niterói e a casa encravada
na aldeia beirã
sofro hoje a dor de ambos
separados por um mar
de pobreza e honradez sem mácula
morta minha avó está viva
no meu coração desamparado
meu avô que não conheci
não encontra espaço para me oferecer
a infância que não tive
não acredito em deus
sou órfão do céu e do inferno
mas gostaria de ver
sem tempo nem lugar
o perdão sereno de minha avó
naquele sorriso tão raro
aberto no rosto feito de mágoa
e de certeza de ser grande


(inédito de António Manuel Ferreira)

93...

... em lista de espera.

terça-feira, janeiro 26, 2010


sábado, janeiro 23, 2010

sorbet

Ajeito o gesto ao geminado sentimento que uníssono nos exalta.
Tão comum singularidade cita o prazer para fora dos termos.
Como numa arena de Creta, queda-se, súbito, o tempo.
Numa explosão de silêncio, encosto meu corpo ao teu, afoito-me com a palma da mão esquerda ao teu seio direito, agressivo como uma urtiga, e beijo-te, do outro lado, a base do pescoço.
Cerras os olhos e fremes as narinas e silvas dos lábios e perlas um suor distenso na testa quente.
Num espasmo longo, com um gurgu de gárgula, ergues-te da terra...
Tenso, reabro o olhar no desejo de te ver e caio na contemplação do teu odor, do teu tremor, desse insciente e animal modo de te perderes, onde, quase, me perco também.
(Não fora a fraqueza do espírito que a razão há muito tomara.)
Contido, achei dever usar palavras insuportáveis, conformes ao momento -- ou talvez falar --:
"Vamos chupar um sorbet de limão?"

sms


crepuscular


quinta-feira, janeiro 21, 2010

madrugada


domingo, janeiro 17, 2010

Foto de minha mãe tirada por meu pai, por volta de 1945

17 de Janeiro de 1979
Pouco a pouco precisa-se o efeito da falta: que é eu já não ter o gosto de construir alguma coisa de novo (excepto na escrita): nenhuma amizade, nenhum amor, etc.
Barthes, R., Diário de luto, Ed. de 70, Lx.

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Textos Velhos

Suite para violoncelo

Prelude
Escrever os lugares da morte
Em busca dos legentes olhos
Que nas cinzas nos lerão.

Allemande
1. Abel,
Tu mesmo
Forma minha…
2. Vicioso, penitente ou virtuoso?

Courante
1. A qual hemisfério acedo,
Boreal ou Austral?
Ao Ganges ou ao Ebro?
2. Limitado que estou no círculo do teu seio
Definitivamente ausente da Rosa dos Justos.

Sarabande
1. Nunca me abraçarás,
Como Sordello a Virgílio,
Fraternamente comovido,
Fragilizado no penar e no temor.
2. Há muito renunciei à sombra
Exausta de tal luz.
3. Também o ponto comum da terra
Nunca nos unirá.
A atopia tragou meu espaço
E de ninguém sou conterrâneo.
4. Apenas no tempo da eternidade
Tudo será, enfim, reconhecido
Estilhaçada a ampulheta
E percebidas as metas como infinitos.

Menuet
1. Rodar-te.
Na esfera da perfeição,
Reter-me.

2. Formulei-te
Eu
O meu destino
Eu
Apenas teu sopro…

Gigue
1. Incidimos
Perdida a dúvida
E ganha a certeza
Da incoincidência.
2. O amplo silêncio
Clama a sabedoria do lugar.
A loba guarda o caminho.
Ignora ser a fera
E o temor que inspira
À alma pecadora.
3. Ofuscada em seu sono
Cede ao eco do uivo
A incerteza do cárcere
E a lástima do réprobo.
4. Fosso ou alto muro?
A eloquência,
No tempo ecoará.

Textos Velhos

Partiu como chegou
espécie de sombra trágica
em medos vindo do sul
o dizer sussurrado
soluçado a céu azul

Partiu como chegou
imane mágoa sem mácula
efémera só deslizando
num pudor inconfessado
a sombra cinza rasgando

Partiu como chegou
agitou o ar pasmado
da chegada fez partida
toda ela tão chorosa
toda ela tão sofrida...

Partiu como chegou…

Textos Velhos

Ociosas as aves…

Fino é delicado.
Até magro.
Fim é só termo.
O termo lavra-se então.
Chegado o fim, sentou-se numa cadeira cómoda, ao sol, e pensou ser feliz por poder fechar os olhos devido à luz, enquanto o calor lhe lassava o corpo.
Os pardais e os melros perceberam perfeitamente que estava colocado (que é desistir) procurando (que é desejar) estar só (que é desolar), perceberam perfeitamente – como se perdia já – que bastava um gorjeio ou silêncio para testemunhar o pão que a mão infeliz e fatigada havia dado.
E por isso trinar.
De gratidão. E para a manhã ser plena como uma fêmea e humilde como uma formiga, não lhe chegou ao ouvido voz humana

Textos Velhos

O mar hoje
Que tem que lhe faltasse ontem?
Os meus olhos de ver diferentes
Que têm hoje que lhes faltasse ontem?
A tua ausência na terra lavrada dos meus passos.

O mar hoje
É cimento
A escorrer babas de betão
De um cinza baço e sujo
Ganidor mais que a ronca nevoenta.

O mar hoje
É a minha ira fria
Os meus olhos que azul ficaram aço
A mão que te afagou
Que punirei numa fogueira.

O mar hoje
É o colosso que rouba a terra
E lhe devolve esferovite a boiar
Paus secos rolhas bóias
Redes velhas peixes mortos.

O mar hoje
És tu
E um farol rouco
Velho e cansado
De uivar lamentos.

O mar hoje
É uma gaivota penada
Uma traineira podre
Um vagabundo nas dunas
Cacos da mensagem que não chegou.

O mar hoje
É um sol vestido de puta
Uma concha quebrada
Um molhe viscoso
A areia peganhenta nos meus pés.

O mar hoje
Sou eu.
Ontem éramos nós
Amanhã ninguém
Depois de amanhã não existe (s).

Textos Velhos

O ar coa…


Assumo a lentidão que o corpo exige
Contraponto cruel ao cérebro dado

Em dois andamentos se esgaça a sin-fonia
Puimento dos sons e das causas dos sons
Batalha sem êxito ao clamor da fífia estrídula
Corpo que cai no dia e no dia a seguir ao dia
Atraído ao êxtase da terra
A que o pensamento in-extático não se rende
Antes voa-e-foge-vital-brilhante
Para arriba das nuvens muito altas
Donde apupa manguitos aos corpos gastos
Extenuados-razantes & decrépitos
No dia em zénite rés lá voa o dito
E congemina o a-dizer
E a dinâmica da calma, da alma-calma…
Dá-lhe enfim o justo espaço e o certo tempo
Em que o corpo cede e a mente voa
E é porque o corpo cede que o efeito
Se faz águia e o ar coa…


4abril2004

Textos velhos

A noite.
E a voz da Callas, a operar Ponchielli.
Passo os olhos cansados por Luiz Pacheco, LLansol e Musil.
Indignados.
Por estarem juntos.
Não me fixo.
Nem me quêdo.
(E fico fulo quando o computador se me recusa os sinais.)
O som daquela voz já morta desfoca-me.
Ouvir os mortos neste mimar de dores alheias e dramas de faz-de-conta.
Como todas as ficções das nossas vidas, afinal.
Desconsolo?
Ou gozo do desconcerto.
Atraso a cama onde a insónia me assegura atalaia certa.
Como morangos com alarve suavidade.
A polpa.
Rosa, ou rosada.
Satisfaço aos sentidos.
A audição, a visão, o gosto, o tacto, nestas teclas tão sovadas e o cheiro de mim.
A Casta Diva, da Norma.
Agora.
Um chouto de artes altas num atapetado pinhal.
De caruma que cheira (ainda) à resina.
É um lamento tresvairado que rasga o ar parado.
Os bravôs e as palmas das gravações ao vivo são piores que a tosse seca In mia mano alfin tu sei.
O Luiz faz um minete à Irene que ele sabe vir de f…. com o Fernando.
“Um fedor e sabor a esporra meus conhecidos.” / “(um broche por tabela ao F., afinal)”.

“este é o jardim que a ausência permite”, acresceria G.

“Törless há muito tempo que se recostara novamente. A respiração quente de Beineberg ficava presa nos casacos e aquecia o canto. E como sempre que se excitava, Beineberg deixava em Törless uma impressão penosa.”
, remata Robert que joga à sueca com Kafka, Joyce e Proust.
No glamoroso quarto deste.
O ardor de olhar.
Meus olhos têm mais de cem anos.
E meus ouvidos os sons dos mortos.
Só eu estou a fingir que vivo.
E se não fossem os morangos já não tinha certeza de nada.
Vien diletto, è in ciel la luna.
Gorjeios de estorninho.
Gostava de uma donna a gemer assim, tão afinada.
Ponto (a)final boa noite.

quinta-feira, janeiro 14, 2010

Cesário Verde - com os olhos limpos de névoas...

(clique)
(...)
Ei-las que vêm às manadas
Com caras de sofrimento,
Nas grandes marchas forçadas!
Vêm ao trabalho, ao sustento
Com foices, sachos, enxadas.
(...)

quarta-feira, janeiro 13, 2010

maçã --» corte transversal




domingo, janeiro 10, 2010

Do Sr. Dr. Manuel Machado de Sá Marques...


...ilustre médico e neto do Presidente da República, Bernardino Machado, sobrinho de Aquilino Ribeiro, 'recebi' esta prenda... que relata, em páginas deliciosas, uma petisqueira em Soutosa, com trutas do Paiva e um estranhíssimo arroz de caril, "especialidade" do autor das "Memórias...", Rafael Salinas Calado, por meados da década de 40.
Bem-haja, Doutor Manuel, pela simpatia e partilha de tão valiosos saberes e vivências.
Um grande abraço com muita admiração.

Da varanda do meu quarto...

De facto para quê viajar? Tenho tudo ao alcance de uma mão... até a neve que tantos procuram nos Montes Hermínios, hoje, de manhã, me brindou ao correr das persianas.
Ainda assim, porfiado, na constância dos anos (e do "tem-que-ser!"), passeata matinal com os canídeos e depois visita aos equídeos, a levar os mimos habituais.
Ontem, a água dos canos, no Centro Hípico, congelou, deixando os bebedouros secos. Para a quantidade que um cavalo bebe quotidianamente... foi uma diligente azáfama do brioso pessoal.
Hoje, a neve cobre a cidade. Mas está menos frio. A cidade de Viseu é bonita com neve ou com sol, mas hoje, não sei porquê (coisa dos meus olhos cansados), parece-me mais bela ainda...


Aveiro III - epílogo (aos conterrâneos)

Estética do vazio, a reflectir coerentemente os tempos de hoje.
O neo-realismo a mostrar o Homem na sua titânica luta quotidiana.
Estes paineis bem mereciam ser limpos. Ainda por cima, em terra de tanta água...

idem, para estes, na sua graciosidade art-déco
a herança viking que ficou nos moliceiros e nas belas mulheres de Ílhavo
nunca tão bem acompanhada...

frisos em cantaria esmerada
do Mercado Velho para os Botirões
bisonha geometria
medievas reminiscências
a modernidade
fachada, cor e toponímia harmoniosas
como uma fenda (para magros)
da cantaria ao ferro forjado, memórias do opulento bom gosto
aqui vejo as minhas costas, amanhã...
de guarda à Capitania
omnipresente, o mar e seus frutos
e por todo o lado, de atalaia, vigilantes, as gaivotas
às espaldas da Capela do meu santo padroeiro, São Gonçalinho, festejado hoje, a 10 de Janeiro
epigrafada lápide, "Pela alma do Homem que fazendo-se esta obra morreu nela" - 1712
Cais dos Mercanteis
- os mercanteis (de mercante, relativo ao comércio) podiam ser também um conjunto de navios destinados ao transporte de passageiros, mercadorias e correspondência. Nesta rua fica o restaurante O Mercantel.






















sexta-feira, janeiro 08, 2010


quinta-feira, janeiro 07, 2010


segunda-feira, janeiro 04, 2010

Aveiro II




















domingo, janeiro 03, 2010

Aveiro I


Tenho cada vez mais clara a ideia da minha atopia. Logo eu, que sou o viajante da imobilidade (ou pouca mobilidade, mas decerto o contrário do globe-trotter!).
Sinto, hoje, que não estou particularmente enraizado em lugar algum. Uma perda gradual de referências (e de pessoas) acentua essa percepção. Percebo que poderia acabar os anos que me faltam onde quer que fosse. E tenho a consciência, cada vez mais, de que se me apoucam as necessidades, ido que foi o tempo do acessório.
Porém, por vezes, insisto em alguns lugares. Uma revisitação proustiana, só que sem grande sabor e uma memória, gradualmente, a fragmentar-se como lascas de madeira velha, roída pelo caruncho, ou...uma madeleine a esfarelar-se na boca.
Hoje, fui a Aveiro. Porque nasci lá? Não sei. Fui. Sozinho. Parei o carro no velho Cais de S. Roque e andei por ali, pelos Botirões, Mercado do Peixe, Rua das Falcoeiras, dos Arrais, dos Mercantéis, das Velas, Rua Maestro Lé, Rua de S. Gonçalinho, Praça das Palmeiras, Rossio…
Porquê? Porque talvez sejam os únicos sítios onde um resquício qualquer me prende a um detalhe passado… Fui comprar “raivas” à pastelaria do costume. Andei pelas ruas estreitas de casas azulejadas. Fui saúdar o grande José Estêvão, visitar o CETA (que será feito do encenador Fino?) e à procura da Convés, galeria de arte que era do Zé Penicheiro, e já tem um prédio novo em cima (havia uns azulejos da autoria do Mestre na parede; será que alguém os preservou ou foram “reciclados” a malho e picareta?), as casas das tias-velhas de janelas cerradas, fui ver os moliceiros, fui à capitania, ao Arcada, ao Imperial (onde fiquei algumas vezes). Só não consegui ir ao CC, porque são todos muito novos e iguais. Até me esqueci de almoçar. Comi raivas e uma maçã de sobremesa.
O velho Rossio de Aveiro mantém uma parte igual a si própria, na sua decadência secular, e outra parte que se vai construindo, com arrojo, mas sem grandes desfigurações, o que já é 'arte'.
Arte, aliás, que está por todo o lado, em Aveiro. E nos mais ínfimos pormenores que qualquer olhar atento descrutina. Do belo kitsch da proa de um moliceiro, à art déco de uma fachada...
O tempo esteve seco e rondando os 14 graus. O sol 'des-hibernou'. Levei um livro, “Cidade de Ladrões”, de David Benioff (Dom Quixote), que recomendo vivamente. Sentei-me num banco sobre a Ria, lambido por raiozito de sol mais descuidado.
Até me esqueci de ir à praia, ver o mar, ou melhor, às praias de minha devoção: Barra, Costa Nova e Vagueira.
Já agora um pormenor: o São Gonçalinho festeja-se a 10 de Janeiro. Por isso é o meu Santo Padroeiro. E outro, mais preocupante: a peregrinação pelos topos do passado significará ausência de presente?
"raiva"
Não deve ser casa de aviador...
art déco
a vingança da gaivota...
os arcos da Capitania
expressão do romântico
a faina, em estética neo-realista
uma delííícia!



a expressividade argumentativa de um grande político: José Estevão
bela brejeirice kitsch
não há semelhanças, entre um moliceiro e uma gaivota?
em cima, o meu São Gonçalinho, rude, tosco, popular, com seu báculo de ferro cru, seus olhinhos vesgos e expressão austera. O meu padroeiro!


a cor! o céu, o mar.
PS:
Este 'post' é para a Isabel.